22/11/2020 10:39
A culpa... esse sentimento que muitas vezes vivemos... a culpa que se sente quando se passa mais tempo fora de casa do que em casa... com a sensação que cuidamos mais dos outros do que dos nossos... o dever... a obrigação de não falhar... a responsabilidade... a profissão... como entendo bem este desabafo tão frequente entre nós... querer e não estar... querer e não poder... estar só em pensamento... quem falta nos convívios de família e amigos?... sempre o mesmo... é ir gerindo cada dia, cada acontecimento como o normal de uma vida de quem escolheu cuidar de outras vidas mesmo sentindo aquele remorso de quem teve de optar por não estar em momentos onde seria espectável estar... pois... custa... olhar para trás e ficar com a sensação que se cometeu um crime contra os nossos... em que o réu deveria de ir a julgamento sob a acusação de roubo... roubo de momentos bem passados altamente geradores de felicidade, de memórias positivas a lembrar num futuro onde ninguém se esquece do afeto que sentiu pelo outro, do calor humano e segurança sentida... do amor... da magia do amor... da família...
Ser enfermeiro... gente que cuida de gente e que pouco cuida de si... vestir a pele, o sentimento e o amor pela vida que juramos cuidar... com uma importância tal como se de ar fosse para respirarmos... aquela sensação de cumprimento de dever com que se fica depois de sair de um turno bem complicado... as vidas que passam pelas nossas mãos... as vidas que se depositam em lagos de esperança onde cada um de nós assume primordial papel na primeira ponte entre quem sofre e o resto do mundo... ser enfermeiro... a gente que cuida da gente que mais não quer que a normalidade de volta... sem dôr, sem sofrimento, sem medo, sem nada que aumente o desconforto de algo que não pediram mas que bateu à sua porta trazendo angustia, incerteza num amanhã que antes era certo e que agora não passa de uma incerteza tão certa quanto as certezas mais certas...
A culpa de ser enfermeiro... esta culpa que só expira quando com o passar do tempo e com eles já crescidos, feitos homens e mulheres nos tocam o coração com palavras de amor, admiração e orgulho e nos fazem sentir pelos seus atos e palavras que afinal não falhamos... quando nos dizem: nunca te senti ausente... e que pelo contrário sempre te senti presente mesmo quando te culpavas por estares ausente... é... a culpa expia-se... esta culpa maldita arrancada do meu peito pelo amor que os meus têm por mim porque num balanço entre ter e não ter, ser e não ser, estar e não estar... ganha o amor que sempre foi dado de forma incondicional... amor... a maior herança que podemos deixar aos nossos... com isso todo o resto vem... pessoas melhores e um mundo melhor...
Culpa... essa culpa que hoje rejeito porque sei que fui entendido... bem entendido... num tribunal onde o júri votou por unanimidade numa absolvição de um arguido tornado réu que só foi réu porque durante anos e anos lá se colocou por si próprio em tribunal por crimes que afinal não cometeu...
Hoje... agora... em paz com a consciência que orientou nas opções que tiveram de ser feitas tendo em conta a salvaguarda e garantia de oportunidades só possíveis com o sacrifício de ausência quando assim teve de ser... Em paz... Eles estão aí... Fortes... Resilientes... Lutadores.... Sabem que nada cai do céu... Têm noção do quanto custa e o que custa... Eles sabem dar... Eles sabem o significado de não... Eles estão aí em posição para enfrentar obstáculos, a vida com os seus altos e baixos... Eles estão aí para dar o seu contributo a um mundo que necessita de ser mudado... Eles estão aí, os filhos dos enfermeiros... Este mundo é vosso.... Cuidem...
Sidónio Faria